Enquanto a alma do café fugia da caneca, seu calor morria nas mãos.
Algumas manhãs de outono emprestam sua calma, de graça. Fosse você, a usaria sem ressalvas. A que estou a contar-lhe, encobriria um contrabando, um crime. Descobri sem querer que abrigava um criminoso, simpático, mas um ladrisco experiente.
A preocupação era antiga, há tempos buscava uma explicação: como alguém tão minúsculo poderia comer tanto? A questão é física, de espaço. Não se coloca um pé no buraco do olho. Não cabe, simples assim.
Dia após dia, a comida findava cada vez mais rápido. Antes, até sobrava para o dia seguinte, agora, mal dava para meio dia. Mas naquela manhã invernada, o mistério chegaria ao fim.
O propósito era tomar o meu café, contemplar a natureza, voar com alguns pensamentos, encarar o abutre recém-chegado, caso necessário, nada demais.
No entanto, não seria mal solucionar esse enigma.
Ao colocar a caneca na mesa da varanda, a casinha de madeira sobre o galho seco já estava pintada de cabecinhas amarelas. Vinte, talvez trinta canarinhos-chapinha colocavam a conversa em dia, enquanto comiam o farelo de milho servido assim que o sol dava as caras. Nossa contribuição para os moradores do quintal terem a mesa farta.
Por um momento, quase esqueci o que viera fazer.
Consertei a caneca desalinhada com o desenho da mesa. Entrei.
Mais uma vez, repeti o ritual matutino – limpa bandeja; corta um pedaço de maçã; água no potinho e no bebedouro; umas três qualidades de comida – especiais.
Coisa fina, mais cara que muito lanche de gente.
Aumentei todas as quantidades, haja vista que, nos últimos meses, tudo acabava antes do almoço.
O monólogo seguia como de costume, quase acreditando que ele fosse responder a qualquer momento. Eu sabia que não, mas, ainda assim, continuava falando:
– Vamos tomar um sol? Seus amigos já estão lá, no parquinho, fazendo a festa.
A caminho da varanda, a última instrução:
– Toma a água amarela toda. É remédio. Para você sarar e voltar a cantar bonito, está bem?
Coloquei a gaiola no chão, perto do galho seco.
Dei as costas e fui tomar o café esquecido. Quase completei a caneca, mas preferi sentar-me à sombra, com os pés no sol, vigiando Lin dos perigos do bosque.
Sabe que outro dia um gavião quase o arrancou de dentro da gaiola?
Desde então, assisto ao seu banho de sol sem desgrudar os olhos dos arredores.
O abutre sagaz, fica na árvore, à espreita, aguardando aquele átimo que trará seu café da manhã. Aproveito a guarda e ordeno as ideias para o dia.
Ainda tentando encontrar o gavião escondido sob a folhagem, de relance observei os quase trinta chapinhas descerem ao chão em uma coreografia ensaiada.
“Gente, que organizados. Parece que fazem isso diariamente”, pensei.
Logo veio a dúvida. O que faziam no chão se a comida deles estava na casinha, galho acima?
Eis o flagrante. A partir desse momento, eu presenciaria um contrabando de iguarias, mercadoria fina.
Lin, meu canário-belga, não teve meio pudor em distribuir a comida especial que lhe dava todas as manhãs. Sem um pingo de vergonha, catava os grãos e pedaços de maçã, bico a bico, e os jogava para fora da gaiola, em meio aos pedidos dos amigos.
Era admirável como se entendiam bem.
“Chapinhas de longa data, não é Lin, seu ladrãozinho de bico?”, a pontada no meu bolso denunciou.
Conforme o pio dos cabecinhas amarelas, meu canarinho mudava o cardápio nobre jogado ao redor de sua casa. Grão por grão, eu vi meu rico dinheirinho indo para o bico alheio.
Contrabando debaixo do sol, na cara dura. Assisti a tudo, totalmente ignorada. Eis a verdade: a comida especial nunca dava, por que servia a vários bicos.
Indignada, quase o tirei de lá, mas o café escorrendo pela mesa impediu que eu perdesse o melhor. Desviei-me da cascata negra, que em breve seria o banquete de algumas formigas. “Quanta folga desses chapinhas, têm o quintal todo para se esbanjarem, já ganham o extra que damos de bom grado e ainda querem o café do outro?”, protestei.
A calma da manhã soprou. Escolhi ver o desenrolar do contrabando de bico em bico. Pouco a pouco, o café e a revolta esfriaram de vez. Os raios de sol tomaram conta da mesa e do coração. Foi então que percebi o que o crime escondera, o meu canarinho-belga estava cantando. Lin parecia feliz.
Fazia tempos que não o ouvia. Desde nossa grande perda, ele se calou.
A lembrança traçou um desenho de saudade em meus lábios.
O fim do mistério a um sorriso de distância.
Não era crime, era comunhão. Amizade.
Celebração, o compartilhar do pão.
Se toda tristeza virar canto de passarinho, não me importo em patrocinar contrabando de bico, nem tomar café frio.
***
Direto do meu quintal para você.
Andiamo.❤️
Karine Oliveira
(Contrabando de bico | Crônica – 06/05/2022)
P.S. Gabi, você gostaria de ver o Lin cantando de novo.
Ou será que viu, daí do céu? 💕
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