Folheando minhas notas, encontrei essa crônica escrita em agosto de 2024.
Pois bem, voltemos a agosto e à história que ele guarda.
Eu escrevi um sambinha há uns 20 anos. Talvez mais. É, deve ter mais tempo.
Deixe-me pensar, acho que tem, mas isso não importa.
O sambinha importa.
O sambinha se chama “Quero ver a vida passar mais devagar”. Devidamente registrado na lousa da minha cozinha para o sambinha grudar na mente.
Essa semana viajamos para o interior: o digníssimo, eu e o Henry Gabriel, nosso netinho que mora conosco. E eu me lembrei do sambinha.
Sabe, ele me ajudou a refrescar a memória: deixei oportunidades de trabalho passar, joguei pela janela.
Deixei. É… Deixei. Ainda bem.
Como assim? Comemorar esse ato que poderia ser considerado até insano nos dias de hoje. Jogar oportunidades de trabalho pela janela?
Não qualquer oportunidade: uma oportunidade formidável!
E não estou gastando adjetivo atoa, lembre-se que sou fã desde a infância, daquelas número um, discípula de Machado. Aprendi com o mestre, não se usa adjetivos fracos, nem atoa e muito menos em vão. Era realmente algo muito bom, mas era também…
Bom, por ora, guarde a palavra: for-mi-dá-vel.
Vou te contar. E pode ser que, talvez, o sambinha te ajude como me ajudou…
Reparei, décadas depois, que o sambinha é uma espécie de lista dos desejos.
Acho que era algo assim, está meio fora de ordem, mas vai servir.
“Quero ver a vida passar mais devagar.
Quero ver a vida passar mais devagar.
Quero construir uma casinha branca no pé da serra
para eu morar com meu amor.
E lá do quintal, quero sentir o cheiro de café saindo pela janela.
Quero ver as crianças chegando pela estradinha.
Quero sentar na varanda e olhar o pôr do sol de mãos dadas com meu amor.
Balançando na cadeira até a noite chegar.
Vendo a vida passar bem devagar.
Quero ver a vida passar bem devagar…”
É até legal, não? Já ouço o pandeiro. Ah, vai! Não é tão ruim, rsrs.
Dá para balançar o corpinho, mexer os pezinhos, nem que seja samba de dedinhos.
Tá… Mas o sambinha me ajudou em quê?
Já naquela época, eu queria (e tentava) ir contra a correria desse mundo maluco. Mesmo tendo a mente a mil, gosto da quietude, do meu canto e claro, dos meus livros. Aprecio a solitude. Palavra linda, aliás, uma melodia.
Nem sempre é fácil ir contra esse mundo pirado, mas nessa viagem, com o Gabrielzinho dormindo no meu colo em um banco na praça da matriz, eu me lembrei que a gente escolhe umas coisas por aí.
Algumas vezes a gente escolhe, é verdade.
Outras, a gente desescolhe.
Outras tantas, a vida se impõe e a gente vai ter que fazer o que deveria ter escolhido há tempos, sob pena de estar bem atrasado.
Talvez, já não dê mais tempo para certas coisas.
Talvez, já falte o vigor.
Talvez, alguém já tenha ido para nunca mais voltar.
Talvez, o tempo te mostre que aquele trabalho formidável era só purpurina e um excelente sugador de vida. Aliás, era formidável mesmo, no sentido primário da palavra. Você já vai entender.
Mas talvez, ainda dê tempo de escolher ver a vida passar mais devagar.
E porque você deveria querer essa calma toda?
Porque a contemplação mora na vagareza.
Ela só está no presente, só está no olhar que você decidiu pousar na vida ignorando o tempo que continua seu corre.
E quando você parar mais vezes para ver a vida passar mais devagar, pode descobrir que é ali, na calma, que está o que mais importa.
Um sorriso tão verdadeiro e um sono despreocupado como o do Gabriel, uma construção belíssima naquela esquina de todo dia, um dia azul de inverno, um dia a mais de vida para lembrar de quem, agora, só vive na sua memória.
Mas sabe a lista de desejos do meu sambinha?
Ainda faltam mais crianças na estradinha e a cadeira de balanço. Troquei por outro aparato de descanso. Uma rede. Quase igual. Talvez, melhor. E escolhi que quero mais dias em câmera lenta.
Feito esse que você está vendo um pedacinho.
Rede. Família. Leitura. Escrita. Trilha sonora. Vida.
Escrevi o sambinha na lousa da cozinha, perto da geladeira, para me lembrar todos os dias do que importa de verdade.
Quero ver a vida passar mais devagar mais vezes na vida.
Porque ela passa rápido demais.
Quando a gente pisca… Puf! Menos um segundo.
É o que temos, caro leitor. Cada segundo que piscamos.
O sambinha virou meu lema há tempos.
Contudo, nem sempre é possível ver cada momento assim, passando com sabor, devagar… devagar mesmo.
Entretanto, descobri outra coisa nessa jornada de busca por dias mais calmos, mais formidáveis, por que não?
A busca traz. Na busca você foca.
Você esquece o que não importa. Você se desvia das tranqueiras jogadas no trilho do seu trem. Na busca você vence um dia de cada vez e vai vendo que é possível ter a vida da paisagem do sambinha. O seu sambinha. Ainda que more na cidade grande, cercado de cinza e ruídos.
De repente, na busca a vida muda.
E quando a gente pisca… Puf! A vida mudou para o que era sonho.
Àquela época eu diria que seria tão difícil que talvez o sambinha seria para sempre só isso: um sambinha. Mas a parte curiosa de tudo isso é que eu não liguei para o que achava difícil.
Normalmente, não estou nem aí para isso. Eu vou. Eu sigo. Talvez por isso minha palavra italiana preferida seja Andiamo, minha despedida ao final dos meus textos.
A busca traz.
A busca gera o movimento.
A busca é o foco, não as coisas difíceis.
A busca te leva para outro lugar diferente do que você não quer mais estar.
A busca tornou-se o caminho enquanto ele se fazia.
A busca arrastou todas as desculpas, todas as dificuldades e gente faladeira, como latinhas amarradas na caminhonete amarela dos noivos.
Elas falam, falam e falam. Latinhas!
A gente ouve, mas não escuta – é só barulho.
O que importa mesmo é o caminho e a busca: uma vida que passa mais devagar para o que você quer ver por mais tempo. Cheiro de quintal, café passado de pouco, página de livro, cheirinho de amor. Faça sua lista.
Ah, e sobre o trabalho formidável, que não desejo para ninguém, e os dias formidáveis, que desejo para mim e para você? Te explico.
“Formidável” foi umas das primeiras palavras que aprendi com Machado.
Eu devia ter seis anos, eu acho. Por aí, seis, sete… E, na época do bruxo do Cosme Velho, não queria dizer o que você provavelmente pensou.
Não, não! Lá pelos anos de 1800 e qualquer coisa, “formidável” queria dizer algo que inspira pavor. Com o tempo, passou a significar algo fantástico, maravilhoso.
Pois bem, você pode estar pensando: “Mas o trabalho era tão horrível assim”?
Sabe o que quase meio século de vida me ensinou e o sambinha me lembrou?
Se algo te afasta do que você mais preza, das pessoas que você ama, do lugar onde quer estar, e até mesmo de você, então sim, esse algo é horripilante. “Formidável”, como nas páginas do conto Ocidentais e deve ser tirado da sua vida o quanto antes.
Em seu conto, Machado escreve que essa criatura formidável devorava a si mesmo. Que gostava do colibri como gostava do verme.
Se há algo na sua vida que é formidável como na descrição de Machado, fuja. Vire as costas e corra o mais rápido possível de volta para a vida sem essa coisa.
Mas isso é papo para outro dia. Aliás, podemos ler contos do mestre juntos e aprender muito sobre a vida. O que acha? Eu acho formidável! O formidável dos dias de hoje, claro, rsrs.
Estou vendo a vida passar mais devagar mais tempo do que pensei.
E bem antes do que imaginei.
Quando escrevi o sambinha, pensei que talvez – talvez – seria possível depois dos 60, 70, daí para lá.


Chegou antes, bem antes.
Amém, por isso. Como diz o Keruvel. Obrigada, Deus.
E isso é bom demais da conta.
Espero que você escolha o mesmo.
Aproveite o carnaval e escreva seu sambinha.
Andiamo!
Karine Oliveira
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Ah que delícia ler os teus textos, minha querida mestre de uma outra vida!!! 😊😘